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Desfazer-se do corpo do romance e mostrar a voz que o antecede.





O romance clássico é construído por uma mesma estrutura, tendo por base fatos e personagens. Quando narrados em primeira pessoa, há a presença dos fatos e de uma estrutura que o organiza o enredo; há em alguns romances um narrador. Em As Ondas, o sétimo romance de Virgínia, a condução é toda feita por vozes. São seis: Rhoda, Susan, Neville, Jinny e Louis - e um espectro: Percival, um ponto de encontro, algo correlativo ao que o farol de Ao Farol era para os Ramsay. Em determinadas passagens, Percival é mesmo um ponto quase a ser alcançado, como o farol do romance anterior era um lugar a ser alcançado. É também o único que não é uma voz, mas um personagem.

Voltando a estrutura do romance. É importante considerar que este seja conduzido não por personagens com corpos, mas por vozes de personagens, quase sem corpos. Essa imagem nos serve para pensar que Virginia abandonou o corpo da literatura, suas formas clássicas, seus parâmetros, para trazer em As Ondas o que é anterior à forma. Virginia queria abandonar o corpo da literatura, trabalhar apenas com sua voz e o fez em As Ondas. Toda obra tem uma voz. Em As Ondas há tão somente vozes. As ações, a realidade, os dados objetivos menos importam do que “o som militar das palavras”, como bem trouxe Virgínia no conto A Marca na Parede, referindo-se ao que importaria aos romancistas do futuro.

As vozes do romance são de dois tipos distintos: uma narrada pelos personagens e outra pelo interlúdio. Que voz narra o interlúdio? É a mesma que narra o capítulo O Tempo Passa, que serve também de interlúdio para Ao Farol, romance anterior ao As Ondas. Uma voz também despersonificada, porém pertencente a personagem nenhum. Como se a Coisa mesma, o olho que há sobre os lugares que não habitamos descrevesse a cena que vê. Virginia também nos conduz de um romance a outro como nos conduz com a continuidade de seu fluxo de consciência. Elementos que se encontram aqui também podem ser encontrados ali. São pistas que marcam o fio que nos acompanha por seu pensamento, seu projeto literário, sua obra.

A experimentação com a temporalidade é algo que Virgínia em seus romances, sobretudo a partir de O Quarto de Jacob, que saiu pela editora que fundou com seu companheiro. Mas em Noite e Dia mesmo há uma marca da relação do tempo com os personagens: o título evoca os dois estados de um dia. Pela manhã, os fatos objetivos dos personagens, pela noite, suas questões, seus pensamentos, o que se torna difícil de distinguir as formas. O tempo sempre terá correlação com os personagens e a narrativa desde então. Em Mrs. Dalloway, o relógio são as ondas que conduzem os personagens tão menores diante dos fatos trazidos pelo tempo. Todo o romance se passa em um dia. Em Ao Farol, dois dias são separados por vários anos. Orlando é um personagem que, com uma só vida, atravessa séculos. Em As Ondas, um mesmo dia, com o sol em suas variadas posições, do nascer ao se pôr, dando lugar à lua, marcam o tempo do nascer ao morrer da vida das vozes que constroem o romance.

Outro elemento crucial, após o tempo, é a água: seu fluxo, suas ondas. Estão esses elementos presentes desde sua primeira obra, A Viagem: atravessa-se um oceano, e embora o romance seja estruturado em forma clássica, são os pensamentos mais do que as ações o centro do romance; O Quarto de Jacob se inicia numa praia; várias passagens de Mrs. Dalloway traz ondas e mar como símbolos do que se passa nos pensamentos dos personagens. Ao Farol se passa em uma ilha e além de também trazer esses símbolos em sua narrativa, tem um mar que separa os personagens do ponto derradeiro de encontro com o lugar que dá título ao romance. As Ondas é o ponto máximo, embora não último do encontro de Virgínia com as águas. O encontro derradeiro se dá com sua ultimíssima obra, seu suicídio. Não poderia ser de outra forma, penso, se não tendo um encontro real com o que sustentava imaginariamente os elementos de sua obra. É lançando-se no rio Ouse que Virginia entrega-se ao desconhecido que encontrava na água e que tentava simbolizar com sua escrita. Seu suicídio, portanto, não é um escape, mais um encontro. Um encontro final, derradeiro - e como todo encontro, sem volta.

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