Ao Farol, o quinto romance de Virginia Woolf, me ensina, entre tantas coisas, duas que aqui eu destaco: a primeira é que se atravessa não apenas o que está adiante, no futuro. Atravessa-se também, e várias vezes, o que está no passado. Fazendo uma torção no tempo: para seguir adiante, rumo ao futuro, a estrada a ser atravessada cruza o passado. A segunda é sobre os caminhos que um sujeito toma para tratar seu sofrimento. Virgínia, até a conclusão da escrita do romance, alucinava ouvindo a voz da mãe chamando-a. É após conclui-lo que escreve em seu diário que as vozes cessaram. Detenhamo-nos aqui, consideremos a grandeza deste feito, que é em si uma grande lição para um discurso científico que hoje considera os fenômenos psíquicos reduzidos a um tratamento de mediação puramente química. A escrita, e sobretudo a letra, serviu de matéria concreta para uma amarração do que inundava Virginia por meio das vozes da mãe morta. A amarração da qual a escrita de Ao Farol é efeito entretanto não é permanente, mas em todos os episódios de alucinação e delírio, o tratamento que Virginia dá é o mesmo: a escrita. Uma pena que ainda assim falhe. No período que antecede seu suicídio, ela considerava catastroficamente que já não havia mais nada a dizer.
Ao Farol não é uma obra em estilo clássico, como não o é toda a obra da autora. Não há uma divisão compartimentada em começo, meio, fim. O livro já inicia com a resposta para uma pergunta que não é escrita: "Sim, é claro, se amanhã fizer um bom tempo". Como se o leitor tivesse aberto a porta da casa de um anfitrião e entrado, vendo-se no meio de uma conversa. A partir dali o narrador conduz o leitor, saltando da mente de um para a mente de outro personagem num fluxo de consciência que não é contínuo como não é contínua nossa consciência, que incontáveis vezes tem o pensamento cortado pela lembrança de uma conta para pagar, um compromisso que é necessário fazer.
Na primeira parte do romance a família Ramsay está passando uma temporada em sua casa de veraneio. Há a promessa de uma ida ao farol feita pela mãe da família e um quadro sendo pintado por uma das hóspedes. A segunda parte do livro é uma espécie de prelúdio, como que narrada pelo próprio Tempo, trazendo os efeitos de dez anos que separam e ligam a primeira e a terceira parte do livro. Nesses dez anos, há uma guerra mundial, a morte da mãe e de um dos filhos. Na terceira parte, a família retorna para a casa de veraneio. Em busca do que?
De atravessarem o passado. A hóspede retorna para finalmente, depois de dez anos, concluir quadro que pintava, onde representava a mãe da família segurando o filho no colo. Os filhos agora órfãos acompanham o pai agora viúvo para finalmente fazer o passeio ao farol que não pudera ser feito há dez anos. Aqui, nem o quadro é apenas um quadro nem o farol é apenas um farol. São ambos pontos de chegada, ou de atravessamento mesmo das marcas do passado, dos familiares mortos e do que com eles, ao longo dos anos, foi tomado pela guerra, pelo tempo, pelos caminhos da vida.
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