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Falando sobre Katherine Mansfield (e Virgínia Woolf)

Katherine Mansfield e Virgínia Woolf .


   As minhas últimas leituras de 2016 foram todas de escritoras. Duas de minhas prediletas, aliás: Virgínia Woolf e Katherine Mansfield. Há mais coisas em comum as duas do que apenas o estilo: conheceram-se e foram amigas; trocaram correspondências e críticas sobre suas escritas. Em dado momento, Virgínia confessou: "Eu tinha inveja de sua escrita. A única coisa que já invejei"; por outro lado, Katherine confessava: "Eu me sinto orgulhosa da escrita de Virgínia". Aos fãs de Virgínia que ainda não conhecem a prosa de Katherine, imaginem aí o peso de ter uma qualidade invejável por Virgínia Woolf. Entretanto, esta inveja não era, para Woolf, imagino, uma forma de rivalidade: ambas tinham suficiente consciência sobre as questões feministas que brotavam em suas épocas  - e em suas escritas - para não caírem no jogo da rivalidade. Uma presava bastante a opinião a outra: Antonio Bivar cita, no prefácio de O quarto de Jacob editado pela Editora Novo Século, que uma das críticas mais ferrenhas a Noite e Dia veio de Mansfield, comparando a escrita do romance a Jane Austen, quando esperava, após se decepcionar, que Virgínia era capaz de uma prosa mais "autêntica": e foi então que, trancada num quarto por nove meses (uma gestação!), Virgínia deu à luz O quarto de Jacob, seu primeiro romance experimental, iluminado pelo fluxo de consciência.

   Ambas as mulheres vivenciaram doenças crônicas, tiveram relações complexas com maridos editores e sentiram-se ambivalentes em relação à falta de filhos, como registravam em seus diários. Mas foram realmente seus esforços literários compartilhados que ascendeu a amizade. Na verdade, depois de passar um fim de semana com Katherine, Virginia comentou que era "muito curioso e emocionante que nós duas, tão diferentes uma da outra, fôssemos quase a mesma coisa". Em resposta, Katherine escreveu "Meu Deus, eu adoro pensar em você, Virginia, como minha amiga. [...] Considere o quão raro é encontrar alguém com a mesma paixão por escrever que você tem e que deseja ser escrupulosamente verdadeiro como você."

   Para além de citar as coincidências entre minhas últimas leituras do ano passado, este texto pretende explorar um pouco da escrita de Katherine Mansfield especificamente. Ainda assim, retornar à Virgínia Woolf em algum momento talvez seja necessário: alguns contos de Mansfield dialogam em certos aspectos com alguns romances de Virgínia. 
   
   Pois bem. Katherine Mansfield eram neozelandesa, mudando-se para Inglaterra ainda nova. Chegou a passar algum tempo na Alemanha, onde encontrou escopo para a escrita de alguns contos. Sua escrita chegou ao Brasil em 1940 pela tradução de Érico Veríssimo com a coletânea de contos Felicidade; A partir de então, após sua repercussão, outras editoras trouxeram novas coletâneas e outras seleções de contos da autora. Ano passado, uma de minhas leituras foi a seleção promovida pela L&PM sob o título de Os Melhores Contos de Katherine Mansfield, com tradução da maravilhosa Denise Bottman, que compartilhou parte do processo de tradução aqui

   Esta edição publicada pela L&PM traz nove contos da autora, selecionados pelo tradutor Guilherme da Silva Braga: "Prelúdio", "Euforia", "Psicologia", "Aula de canto", "A vida de Mã Parker", "O desconhecido", "A festa ao ar livre", "A casa de bonecas", "A mosca" e "O canário".

   Mansfield é uma contista de literatura psicológica (seu conto "Psicologia" é de certo modo uma introdução que ela faz de seu próprio estilo). A literatura psicológica é caracterizada pela imersão nas razões das escolhas, ações e motivos dos personagens. Enquanto o ambiente sociocultural é equivalente nos outros tipos de escrita, e a perspectiva é externa ao personagem, na literatura psicológica há uma perspectiva interna, íntima do personagem criado. Tenta-se explorar a consciência do personagem. O fluxo de consciência, de Woolf, e o estilo de Katherine são grandes exemplos deste gênero.

    Como poucos contistas, Katherine tem a habilidade de suspender em seus contos as nuances psicológicas de seus personagens em momentos de leve desconforto; estas nuances aparecem em nível subentendido, e mesmo a esse nível, formam o plano de fundo dos contos, como se seus personagens estivessem sempre num limiar delicado de ordem e desordem, caindo sempre, à conclusão dos contos, na desordem, no desconforto de seus sentimentos frente às situações. São esses estados psicológicos que cruzam e fecham os contos, deixando nós, leitores, sozinhos, abandonados tal qual os personagens diante das sensações que são expostas diante de acontecimentos em maior parte corriqueiros dos costumes europeus em fins de 1800 e primeiras décadas de 1900.

   Seus contos tem uma narrativa equilibrada entre a sobriedade dos atos e o floreio cuidadoso dos sentimentos. O conto, enquanto gênero, parece ter uma estrutura própria para acomodar o que pretende a autora: não há muito o que dizer, o que fazer, o que resolver diante do que se quer mostrar, que é a sensação acontecendo e paralisando seus personagens.

   Um de seus contos mais famosos, e que intitula a maior parte das coletâneas publicadas no Brasil, chama-se "Bliss". Alguns tradutores trazem o termo para o português como "Felicidade" ou "Êxtase ou "Euforia". Acontece que, curiosamente, bliss é uma dessas palavras sem tradução direta equivalente para o Português. O que resta, então, é o trabalho do tradutor de manter sua originalidade na tentativa de traduzir para o mais próximo possível o termo do contexto do enredo. "Bliss", trata de um dia na vida de Bertha Young, que sente, aos 30 anos, um imenso e inexplicável sentimento de euforia (ou felicidade, ou êxtase), como se tivesse engolido um pedaço do sol, e sua luz brilhasse dentro do peito. Bertha, como Mrs. Dalloway, dará uma festa à noite, e o conto acompanha todo o conjunto de preparativos para a festa. Mansfield tem um tratamento cirúrgico no cuidado com seus enredos: ao nos dar uma personagem radiante no início do conto, ela nos surpreende com um desfecho triste, trágico, sem pena alguma de suas personagens, numa verdadeira forma de amassar com violência na mão uma rosa delicada, por quem nutrimos afeição.

   Há outros tantos contos memoráveis nessa coletânea. Um de meus prediletos é "A Casa de Bonecas". Nele, Mansfield escancara as diferenças das classes sociais em seus mínimos detalhes: as crianças Burnell, filhas de uma família rica, ganham uma casa de bonecas imensa, com móveis em miniatura, representando uma casa de verdade. A lamparina no centro da sala é um dos detalhes mais encantadores do presente, de tão realista, apesar de sua miniatura. As crianças levam a notícia para a escola, e todas as meninas de suas classes são convidadas para verem a casinha, menos as irmãs Kelvey, que são pobres e por isso a mãe das Burnell impediu que elas as levassem para dentro de suas propriedades; o conto termina quando as Burnell, por teimosia e inocência infantis, insistem em deixar as Kelvey entrar para ver a casinha, sendo pegas de surpresa pela mãe, que espanta as meninas como quem espanta galinhas. Katherine, em sua engenhosidade, mostra que a dureza da mãe se deu mais pela notícia trágica que houvera recebido naquela manhã do que por raiva mesmo das meninas Kelvey, a quem ela expulsou aos pontapés. O jogo das relações, ainda assim, estava feito: as meninas Kelvey não precisavam saber que foram expulsas porque a mãe das Burnell apenas tinha tido um mal dia. Suas condições estavam estampadas em suas roupas aproveitadas que os vizinhos doavam em caridade, e na profissão de seus pais. Ao menos, entretanto, conseguiram ver a lamparina que ficava na sala da casinha.

  Os outros contos exploram ainda as questões femininas, as relações de poder e o patriarcado. Mansfield tem uma prosa gostosa de ser lida. É certamente uma boa leitura também para os fãs de Virgínia Woolf, e sua relação com a amiga demonstra o orgulho pela ancestralidade que outras mulheres certamente sentem ao identificar em si os princípios de apoio que Katherine e Virgínia tinham uma pela outra, atingindo, além de si mesmas, as próprias mulheres em geral.


Para quem se interessar, há abaixo sites interessantes (alguns em inglês) onde é possível encontrar mais informações sobre Mansfield e sua relação com Virgínia Woolf:



   

   

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