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Obsessão, um conto de Clarice sobre a emancipação de uma mulher



    Iniciei um projeto de leitura de um conto por dia esta semana com a coletânea Todos os Contos, de Clarice Lispector organizado pelo Benjamin Moser, e Contos de Imaginação e Mistério, de Edgar Allan Poe. Essas companhias que tenho tido antes de dormir, desde quando iniciei o projeto, tem me feito perder o sono. Talvez eu deva mudar o horário da leitura dos contos. Um deles, que me deixa insone, é "Obsessão", o segundo conto de Clarice na seção Primeiras Histórias, escrito aproximadamente aos vinte anos de idade.

   Trata-se da história de formação de Cristina, a narradora do conto, que se nos apresenta uma infância comum a infância de uma menina de sua época - "Até que um dia descobriram em mim uma mocinha, abaixaram meu vestido, fizeram-me usar novas peças de roupa e consideraram-me quase pronta" - Esta prontidão certamente é para o tradicional rumo das mulheres: logo, Cristina se casa com Jaime, um homem comum, que lhe traz chocolates durante as visitas. Cristina descobre na vida de esposa a monotonia de seu papel. As conversas de Jaime com outros homens, seus amigos, sobre assuntos que ela não entendia  e por isso entediavam. Devia resignar-se a seu lugar permitido: ser mulher de um homem. Mas este conto fala sobre uma personagem que não quer ser mulher de um homem, mas uma mulher, totalmente. E encontra este caminho por força de um acaso, quando, entediada com a vida proporcionada por Jaime, finge-se de adoentada, depressiva, o que faz com que o esposo a leve para uma casa de descanso, típica do início do século passado, onde as pessoas iam para se recuperar ao redor da natureza e sob cuidados de repouso. Lá, Cristina conhece Daniel. Um filósofo.

  Aqui inicia-se um curioso fervor de elementos que remetem à Filosofia: "Daniel imaterializava tudo". Diante de uma vida materializada em tédio, ao redor da mãe costurando e do pai de cara no jornal, Cristina descobre o poder do que pode ser feito com a percepção imaterial das coisas. De início não entende o que Daniel fala, e ele por vezes zomba dela. Este zombar mais se dá por uma provocação que sabe que seu provocado vai tentar superar: Cristina então se deixa iniciar nas ideias de Daniel, descobrindo as investigações de cunho filosófico que ele apresenta a ela. Ao relatar os fatos, Cristina diz: "Hoje compreendo-o. Tudo lhe perdoo, tudo perdoo aos que não sabem se perder, aos que se fazem perguntas. Aos que procuram motivos para viver, como se a vida por si mesma não se justificasse". A vida por si mesma passa a não se justificar para Cristina bem antes de conhecer Daniel. Depois de iniciada em seus ensinamentos, aí então entra num caminho sem volta. Descobre a solidão, questiona os sentidos, os rumos.

  A respeito dos rumos, logo Cristina é levada de volta ao seio de sua família. Não ficaria para sempre naquela casa de repouso, como já sabia. E enfrenta a volta àquela vida com ódio, embora com todo o cuidado para que nem o marido, a família ou os amigos percebam. Não suporta. Daniel antes adiantara: ela voltaria para ele. "As almas fracas como você são facilmente levadas por qualquer loucura com um olhar apenas por almas fortes como a minha". E volta. Escreve uma carta de desculpas e despedida e vai ao encontro da Filosofia, não daquele Daniel, mas daquilo que a libertou para um estado do qual ela nunca mais voltaria. Tanto assim é, que ao ser recebida por Daniel, eles passam a viver juntos, e após ela se descobrir na vida de uma mulher que faz a comida e passa a roupa do homem, e ele ao se ver sendo o homem que tem uma mulher que faz sua comida e passa sua roupa, ele um homem que tudo imaterializa, e ela, uma mulher que aprendeu a tudo imaterializar, passam a não se suportar. Não é ódio o que surge, ou tristeza, mas a indiferença incômoda à vida que construíram e que estavam levando. "É preciso saber sentir, mas também saber como deixar de sentir, porque se a experiência é sublime, pode tornar-se igualmente perigosa. Aprenda a cantar e a desencantar. Observe, estou lhe ensinando qualquer coisa de precioso: a mágica oposta ao "Abra-te, Sésamo".

  Cristina, então, abraça o destino desolador do qual adianta no início do conto. Fugida da vida pequena que tinha junto à família, indo ao encontro da exploração das ideias, e se vendo novamente presa diante da ideia maior: a solidão de estar viva. Não seria ao lado daquele outro homem que ela encontraria o que buscava, porque sequer sabia o que buscar exatamente, senão meios de sentir e pensar as coisas diferente da forma reduzida à qual em toda a história de sua vida, de seu gênero fora reduzida. Decide então abandonar Daniel e voltar para sua família, seu marido. Lá, descobre que a mãe morrera, o pai viajara para longe. Apenas Jaime a aceita de volta, com uma resignação admirada por aquela mulher que o deixou por conhecer algo que ele não conhecia, e que era melhor que não conhecesse: a solidão, a tristeza, a profundeza que as ideias poderiam alcançar. Melhor então seria sobreviver assim; recebendo as ligações do marido ao fim das tardes, esperando os chocolates que ele traria do trabalho. Talvez diante de alguém que não conhecia a solidão, a tristeza, ela se distraísse de alguma forma dessas verdades que outrora enxergara para nunca mais esquecer, de sua obsessão.

Comentários

  1. Legal seu projeto. É um bom modo de não deixar de ler! :)
    Barbara Filippini ( Presente do Ler - https://www.presentedoler.com )

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  2. Este conto é horrível! Chato pra caralho!

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