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#DesafioLivrosBr: A Paixão Segundo G.H, Clarice Lispector e um breve esboço sobre o Feminismo em sua obra.

Encontro duas formas de escrever sobre A Paixão Segundo G.H (Rocco, 2009. 180 páginas), o livro que escolhi para o mês de março do #DesafioLivrosBR.




A primeira é descrevendo o plano de fundo dentro da qual o fluxo de consciência se encaminha, destacando alguns elementos chave que aparecem até a ação final. Seria assim: G.H é uma mulher da alta classe brasileira (sua nacionalidade está explícita no texto), moradora de uma cobertura. É uma manhã e a empregada da casa foi embora. G.H, então, decide ir até o quarto da empregada, onde esperava encontrá-lo bagunçado, surpreendendo-se depois com a organização que ele apresenta, deixada pela empregada. É dentro do quarto que acontecem os mais intensos conflitos expressos através da narradora.

A segunda, e esta é um desafio, é uma tentativa de ensaiar sobre alguns elementos que fazem de A Paixão Segundo G.H a novela que é. G.H, segundo aponta Boris Fausto, em História Concisa da Literatura Brasileira, significa Gênero Humano. Muito não se sabe da narradora a não ser os aspectos explorados por ela, que são de cunho existenciais e que por isso causam no leitor o estranhamento e a identificação. Não é sem surpresa ou sem o acompanhar de um outro suspiro que passamos pela experiência da leitura da novela. A Paixão Segundo G.H é sobretudo um livro que nos proporciona uma experiência literária intensa. Na ordem da narrativa apresentada no livro, todos os aspectos das coisas ficam suspensos a um nível existencial, fenomenológico, do qual G.H vai adentrando, explorando, investigando. O que ela intenciona é seguir propriamente uma busca dentro deste nível existencial, onde a subjetividade parece entrar em crise e todas as coisas se enchem de inúmeros significados para a experiência da narradora. Esta busca não tem um caminho único, e segui-la pressupõe o seu contrário, uma perda:

"É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma ideia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava, e nem mesmo sentia o grande esforço de construção que era viver." (pág. 10)

Dentro desta busca ao nível existencial das coisas a subjetividade, intrínseca à identidade, também entra em crise. E a partir daí G.H busca constantemente negar e afirmar a própria identidade, desde os momentos que se compara à empregada, a si mesma e até ao leitor:
"Minha pergunta, se havia, não era: 'que sou', mas 'entre quais sou'". (pág. 27)
"O que queria essa mulher que sou? o que acontecia a um G.H. no couro da valise? Nada, nada, só que meus nervos estavam agora acordados - meus nervos que haviam sido tranquilos ou apenas arrumados? meu silêncio fora silêncio ou uma voz alta que é muda?" (pág. 43)

É ao decidir entrar no quarto da empregada que G.H então identifica, dentro daquela sua casa, um espaço tão a parte de todos os outros os quais ela se apropria enquanto habitante de sua cobertura: o quarto da empregada, que servia antes de depósito de objetos velhos é sua contraposição, tanto social quanto existencial, e é lá dentro também que a narradora encontra, saindo da porta do guarda-roupas, uma barata. Está na barata o seu maior conflito.

Durante toda a leitura não nos é distraída a consciência alterada das coisas, a subjetividade em crise, e assim como os móveis, a empregada, também a barata se mostra como o conflito que desperta em G.H seu maior desafio durante a narrativa: ela identifica na barata a existência de um ser muito mais anterior do que o próprio gênero humano, ou seja, anterior a ela mesma. Em certa altura, por nojo, numa tentativa de matar a barata, G.H fecha a porta do guarda roupa, que esmaga o inseto, deixando-o partido ao meio, porém sem matá-lo. E a partir daqui a crise existencial se intensifica. Todas as sensações experimentadas pela narradora são passadas pela prova exaustiva de investigação de seus motivos. O nojo, as lembranças, a insistência em manter-se no quarto e continuar a vivenciar aquela experiência. A barata é também um ser vivo, e a massa branca de seu ventre é seu material vivo como em nós o sangue é nosso material de vida. Embora em formas diferentes, são, G.H e a barata, seres vivos.

"- Segura a minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para o inferno da vida crua. Não me deixes ver porque estou perto de ver o núcleo da vida - e, através da barata que mesmo agora revejo, através dessa amostra de calmo horror vivo, tenho medo de que nesse núcleo eu não saiba mais o que é esperança" (pág. 59)

O último clímax enfim é chegado no momento em que, por uma ousadia de experimentar o Isto da vida, G.H decide comer parte da massa branca da barata. É este o mais expressivo ato, desde sua decisão de levantar da mesa para ir ao quarto da empregada e desde permanecer no quarto e enfrentar seu nojo. Não há uma conclusão final, é o que finalmente se conclui. Mas o fluxo e refluxo constante da experiência de estar vivo é que alarga a vida sensível, e que existe independente de nossa existência individual. O auge da subjetividade em crise é a negação da compreensão, mesmo que a ela se abram todas as possibilidades de entendê-la, numa luta constante entre sentir e compreender. A Paixão Segundo G.H não é um livro que se desdobra poupando-se até o fim, mas um livro que desde o início já se entrega num clímax que permanece até o último parágrafo, que propositalmente não é encerrado com um ponto final.



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Breve consideração sobre o feminismo em Clarice Lispector:

Esta parte não se restringe apenas a A Paixão Segundo G.H, mas a toda a obra de Clarice. Um equívoco é comum ao se falar em feminismo em sua obra, quando seus contos e novelas são constituído sobretudo por mulheres donas de casa, cozinheiras e mães resignadas em suas ações: não é considerado o que, contextualizando sua época, faz de Clarice uma mulher escritora que alarga os significados de ser mulher. Foi ela uma das primeiras escritoras brasileiras  a explorar o que seria a "essência feminina" e que aparece em vários de seus contos de diversas formas. Foi ela que, mesmo escrevendo sobre donas de casa, cozinheiras e mãe resignadas em suas ações, não tinham nada de resignadas em suas subjetividades. São através dos escritos de Clarice que é dada voz à subjetividade de, antes de tudo, uma escritora brasileira, e depois a personagens femininas que falam por toda uma essência humana, participando e a constituindo profundamente, quebrando assim barreiras essenciais que até então eram dominadas apenas por homens tanto na ficção quanto na realidade.

Podemos, em especial, identificar esses aspectos citados em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, onde temos Lori, a protagonista que não cabe apenas em seus afazeres domésticos, e emerge de dentro de si mesma num urro potente e rico, que faz o livro ter toda a sua riqueza. A ironia despretensiosa se dá quando homens ou mulheres ao lerem Clarice, se identificam com suas personagens, por seus anseios tão humanos, tão reais e antes de tudo tão ricos.

Portanto não é à toa que a Clarice Mito mais uma vez aí se justifique diante de tantas mulheres que a admiram, usando-a, como tantas outras mulheres, para afirmar suas convicções feministas.



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