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A bomba, o espirro: uma resenha escrita em tempos de pandemia.




“É terrível a existência de duas retas paralelas: pois elas nunca se encontram e apenas se cruzam no infinito”. - Matilde Campilho

Virgínia Woolf, desde seu quarto romance, O Quarto de Jacob, propõe uma mudança na estrutura do romance que diferente da clássica. A modernização que ela causa com sua literatura inaugura uma nova forma de encarar um texto para o leitor. Por tais motivos, Virgínia é uma autora que não apenas costuma ser, mas deve ser relida. Justifico: uma primeira leitura de Mrs. Dalloway não raro é atravessada por um espanto, um fascínio causado pela estrutura e estilo da escrita. É antes por essa experiência do que pela compreensão que o atravessamento da leitura feita por alguém que esteja iniciando seu percurso em suas obras se dá.  A forma única com que Virgínia constrói seu texto pode ser a primeira vista estranha, pois cobra  uma outra lógica para entende-lo. A primeira leitura então e a de um encontro - e esse encontro, ele se dá ou não. Muitos leitores, em suas primeiras experiências com Virgínia, não suportam a leitura. E é legítimo. Todos experimentamos o mesmo despreparo porque não há nada que nos antecipe a experiência de um primeiro encontro com algo que antes nunca foi experimentado. Ler pela primeira vez Virgínia Woolf é assim. Outros autores costumam causar isso. De cabeça me vem agora Guimarães Rosa, Hilda Hilst, Joyce, Manoel de Barros, todos os grandes.

Mrs. Dalloway é o terceiro livro de Virginia Woolf. Lançado em 1925, o romance se consagra como sua mais importante obra. Nele, Virginia nos apresenta fragmentos do que é a sociedade inglesa após a primeira guerra mundial, a partir dos personagens que cruzam o romance como se, ao lermos, estivéssemos cruzando com pessoas nas ruas. A problemática da guerra está à espreita em todo o romance, e é a isso que neste texto eu gostaria de fazer um paralelo com o que vivemos hoje com a problemática de uma pandemia que não está à espreita, mas em primeiro plano.

O enredo tem seu pontapé inicial com a decisão de Clarissa Dalloway ir ela mesma comprar as flores da festa que dará àquela noite de junho. Durante a ida de Clarissa até a floricultura nós a acompanhamos não ao seu lado, mas por dentro de seus pensamentos. Estaria tudo na mais perfeita ordem, e o sol que brilha refletiria a harmonia da sociedade, não fosse o imenso esforço que a protagonista faz para distrair-se de um mundo que, pela mão dos homens, sofria as consequências de um período pós-guerra.

A essa palavra - guerra - não é atribuído os seus detalhes quando nós a proferimos. Na palavra não cabem os quatro anos de duração da Grande Guerra, para os quais o mundo voltou-se, tomando raízes profundas na civilização e vitimando mais de nove milhões de pessoas. Um evento como esse não deixa que ninguém passe incólume. “A experiência do mundo havia feito brotar em todos, homens e mulheres, uma fonte de lágrimas”. Clarissa, entretanto, faz seus esforços: planeja dar uma festa - ela é uma mulher que não apenas se basta, mas precisa de outros que, reunidos em seu salão, também a façam acreditar que as relações entre as pessoas possam acontecer entre risos e conversas -, sai para comprar flores - a escolha de qual comprar é muito importante, e voltar-se a esse trabalho talvez a defenda da “experiência do mundo”.

Há quem julgue Clarissa Dalloway fútil, supérflua por estar dando uma festa enquanto o mundo ainda estava sofrendo as consequências do pós-guerra. Porém, engana-se quem assim a julga. O que Virgínia ensina com Clarissa é antes sobre as invenções possíveis e necessárias que todos tem de fazer para dar conta da vida diante de crises. Essas invenções, nenhuma delas anulariam o sofrimento, embora criem uma borda possível para nos protegermos da aniquilação de uma angústia insuportável. Acompanhamos o esforço de Mrs. Dalloway em seguir a vida, num constante processo de significá-la a partir do passado. Nós a acompanhamos  repetindo os versos de Shakespeare, dos quais se mune e repete como um mantra: “Não temas o sol ardente, nem do inverno a gélida fúria”. Por outro lado não se esquece que é “muito, muito perigoso viver”.

Há ainda outros aspectos. Se quisermos pensar melhor Clarissa, é necessário considerar a crítica que Virgínia fazia ao "Anjo do Lar", termo adotado a partir de um poema de Coverty Patmore que idealiza o papel doméstico da mulher. O Anjo do Lar, como Virgínia diz em seu artigo "Profissões para mulheres" é uma mulher "extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente na difícil arte do convívio familiar. Sacrifica-se todos os dias( ...) Em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferiria sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros".  Com sua protagonista, Virgínia parece ironizar esse lugar dado a mulher. É emblemático considerar isso durante a passagem em que, na intimidade de seu quarto, Clarissa lembra-se sem pudor algum de suas aventuras homossexuais com Sally.

Depois de Clarissa, há um outro personagem central: Septimus Warren Smith. Um duplo da protagonista. Enquanto para aquela, que por ser uma contemporânea da guerra a viveu indiretamente, é ainda possível inventar formas de suportar os dias - dar festas, cultivar o passado, pensar nos amigos, fazer compras, cuidar da casa -, para Septimus é como se tivesse sido rompido o elo que o amarraria ao laço social. Incontornavelmente traumatizado pela guerra, o duplo de Clarissa não tem mais os artifícios que o possibilitariam inventar os dias. Virgínia trata aqui do estado psíquico de um sujeito sofrendo do que o discurso psiquiátrico identificava por neurose de guerra: os ex-combatentes das trincheiras, ao retornar para a sociedade, apresentavam episódios de pânico, desrealização, pesadelos e alucinações, todos relacionados às experiências nos campos de batalha.

Aqui aproveito para traçar um paralelo: desde o início da pandemia do novo coronavírus, é comum a associação do combate ao vírus com uma “guerra”. Sabemos que o artifício discursivo se faz para identificar o vírus ao inimigo que deve ser combatido, visto que é um inimigo mortal. E é usando desse mesmo paradigma que pretendo propor o paralelo. Como uma guerra, essa batalha deixa mortos - atualmente, 3,71 milhões, e contando - e causa fissuras traumáticas no tecido social. Há no romance de Virginia Woolf uma passagem ilustrativa do trauma: na cena que se passa na floricultura, enquanto Clarissa compra flores e rumina seus pensamentos, há um corte que toma a todos: uma explosão! - o motor de um carro que passava na rua. Mas até que todos corressem às janelas e virassem o rosto para descobrirem o que causara o barulho, já havia sido registrado que uma explosão em um período pós-guerra era o mesmo que um agouro. Os solilóquios de Clarissa, que protegiam seus pensamentos, subitamente falharam ali. Assim como ali não importava se a explosão fosse de um motor ou de uma bomba, hoje não importa se um espirro é causado por alergia ou por coronavírus: ambos são como um agouro.

Se o romance de Virginia se passasse nos dias de hoje, possivelmente Clarissa não sairia para comprar as flores. Precisaria inventar outras coisas para tecer o dia. Tampouco daria uma festa. No máximo, um encontro no meet, zoom, skype. Imaginar a transposição dos acontecimentos do romance em tempos diferentes nos ensina sobre esse artifício que Mrs. Dalloway tão penosamente tenta traçar, a saber, as invenções necessárias para atravessar a vida em tempos de profunda crise.

Todo o romance se passa em um único dia. Interessante notar aqui a atmosfera que é dada as cenas onde a história se passa, iniciando numa “manhã maravilhosa - tão fresca como se feita de propósito para crianças na praia” e terminando à noite, com a notícia do suicídio de Septimus. A morte, que é isso do que Clarissa tanto se resguardava, enfim invade sua casa, onde ela sentia-se “como uma freira que volta às costas para o mundo e é envolvida nos véus familiares”, sua festa, seu ritual antes particular do que coletivo de “viver a vida normalmente” - como tantos hoje também teimam em tentar fazer. Podemos considerar que é por tanto pensar em sua vida no desenrolar do romance quando acompanhamos seus solilóquio que Clarissa se defende da morte. Por outro lado, estando tão próximo da morte - antes na guerra e depois no trauma causado por ela -, Septimus não teve como responder ao chamado da vida. Embora em todo o romance não tenha havido um encontro concreto entre Clarissa e Septimus, com a notícia de seu suicídio podemos considerar que finalmente os dois se encontraram simbolicamente.

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